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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

A escrita de mim 08

Outro dia, revirando minhas gavetas, encontrei alguns textos que escrevi quando eu era adolescente. Relendo, lembro-me da época em que os criei e de como eu achava bacana usar certos elementos.

Eu tinha 15, 16 anos e achava o máximo da ousadia usar palavrões e falar de sexo, o máximo da rebeldia que meus personagens fumassem em cena ou tivessem conflitos psicológicos profundos. Tsc, tsc, tsc, tolinha.

Minha autocensura é enorme, muito maior que minhas pretensões literárias, razão pela qual reflito tanto sobre o ato de escrever e sobre o processo criativo. Mesmo assim, resolvi finalmente publicá-los periodicamente aqui no Casco.

Comecemos com um exercício que fiz no 1º colegial. A finalidade era criar uma história a partir da descrição de um dado objeto no texto. Entre os elementos listados pelo professor, escolhi o relógio. A idéia era de que o objeto fosse central no enredo; como vocês perceberão, proposta da qual eu fugi bastante.

***

Demônio da noite

Ele olhou o relógio. Faltava dez minutos para meia-noite. O relógio de fundo branco, ponteiros dourados e pulseira de couro foi a única coisa que lhe restara. Era bonito e por vezes parecia que falava, relembrava os velhos tempos. Levantou a cabeça e entrou no cemitério. Empurrou o pesado portão de ferro, trabalhado e desenhado. A enorme fechadura há muito estava enferrujada. Claro, afinal era um cemitério abandonado. Foi andando por entre os túmulos, observando as lápides. Algumas eram de pedra-sabão, outras de mármore, mas todas ricas e bem entalhadas. Concluiu que o cemitério abrigava os fantasmas dos nobres ricos de antigamente. Respirou fundo e continuou andando. Levantou a gola do casaco, um gesto típico seu desde aquela outra noite. Havia cinco anos... e desde então, a vergonha não o deixou em paz. A cicatriz contornava-lhe a orelha e ia até a têmpora, cicatriz de faca, um rasgo fundo que ainda fazia doer seu ego machucado.
Na sua cabeça, as imagens dos túmulos confundiam-se com as imagens dele, aquele que o marcara por todos esses anos. Naquele dia contava-se exatamente cinco anos, durante os quais ódio cresceu paralelamente à vergonha. Sentia um demônio dentro de si como se pudesse matá-lo, o seu amigo... seu amigo agora era o demônio dentro dele. Que lhe dava força, força para seguir em frente, para achar o bastardo que fizera aquilo. Depois de cinco anos, o ódio transbordara e se transformara em vingança. Caminhava agora mais rapidamente, avistava a casa do coveiro, o esconderijo do filho da puta. Tirou o revólver do bolso do casaco, carregou-o e chegou até a porta da casa. O ódio se misturou à vingança e à lembrança da cicatriz que carregara por tanto tempo. O demônio chutou a porta e atirou, destruindo tudo, os móveis, as lâmpadas, o bastardo. Não dera chance nem para um adeus. Contemplou o que fizera, o demônio radiante dentro do seu corpo. Virou-se, deixando o corpo estirado, a casa arruinada e o ódio curado.
(1990)

2 comentários:

Anastácio Soberbo disse...

Parabéns pelo Blogue.
É muito bonito, gosto do que leio e vejo.
Um abraço desde Portugal

Codinome Beija-Flor disse...

Bibi,
Algo do seu texto lembra "VENHA VER O PÔR DO SOL" - Lygia Fagundes Telles, talvez o "ódio curado" ou o cenário.
Parabéns pelo texto.
Bj