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quarta-feira, 28 de maio de 2008

Pela primeira vez, de novo

Quando eu trabalhava na Livraria Cultura, tinha lá um rapaz que adorava Clarice Lispector. Um monte de gente adora Clarice Lispector, é até uma coisa meio devota, sabe?, de ler os contos como um catecismo e esse rapaz não era diferente.

Então, eu afirmei-perguntei:
"Então, você já leu tudo o que ela escreveu?"

E ele, naturalmente, respondeu:
"Não."

E eu, com aquele ar de como-assim-?, sem entender. Imaginei que, por gostar tanto da autora, ele já tivesse decorado todos os livros dela. Foi quando ele me disse uma das coisas mais esquisitas que já ouvi mas que, estranhamente, tem certa lógica:

"Sabe o que é? Estou economizando a Clarice. A obra dela está pronta e acabada. É perfeitamente possível lê-la de cabo a rabo, quantas vezes eu quiser, na ordem que eu escolher, cronológica, alfabética, randômica, cor da capa. A única coisa que não é possível, após ler a obra toda, e lê-la de novo pela primeira vez. Entende? Como eu posso passar o resto dos meus dias sabendo que não haverá mais nenhum texto dela que eu não tenha lido, sabendo que eu não sentirei mais o desconforto, o arrebatamento, a angústia que a primeira leitura de qualquer conto dela me causa? É isso. Clarice é tão bom que estou economizando para ler durante a vida toda."

Faz sentido? Não sei.

Há autores que adoro, mas de quem ainda não li tudo. Dennis Lehane é um deles, Michael Connely é outro, só para citar dois exemplos. O primeiro porque, sim, de certa forma estou economizando-o para um dia de chuva. O segundo, porque nem tudo já foi traduzido para o português, e também porque acho aqueles pocket books de folha de jornal indecentes de se ler.

Essa longa introdução é para dizer que lembrei-me dessa história porque estou lendo um livro de Agatha Christie de que ouço falar desde a 6a. série, mas que nunca tinha lido: A Mansão Hollow.

Devo, de início, dizer que me espanta como essa senhora ainda consegue me impressionar, mesmo depois de tantos anos de convivência. Conhecemo-nos, Agatha e eu, desde tenra idade (a minha, lógico, tinha eu uns 10 ou 11 anos, calculo) e achei que ela não mais me surpreenderia. Ainda bem que eu estava errada.

Para começar, Hercule Poirot, o personagem mais famoso da velhota, só dá o ar da graça no Capítulo 11 de A Mansão Hollow. Confesso que abri o livro esperando ver o nome dele logo nas primeiras páginas, o que não aconteceu. Continuei lendo, lendo, e nada. Cheguei até a folhear os últimos capítulos para ter certeza de que ele apareceria e só sosseguei quando vi que, lá pela página 200 e pouco, ele indagava qualquer coisa a um mordomo.

Mais calma, passei a prestar atenção na história e o que li me impressionou bastante. Vamos ver se consigo explicar direito o porquê.

John é um médico que trabalha em seu próprio consultório e também em um hospital público. Encontramo-lo animado com o convite para passar o fim de semana na Mansão Hollow, de propriedade de um casal de amigos, Lady Lucy e Lord Henry Angkatell.

A alegria de John, na verdade, deve-se à chance de passar mais tempo com Henrietta, prima de Lady Lucy, por quem John é apaixonado. Detalhe: John é casado com Gerda, uma mulher que passa parágrafos inteiros incapaz de se decidir se deve mandar ou não o pernil de carneiro de volta para o forno, enquanto espera o marido para almoçar.

Gerda é sem-graça, para dizer o mínimo. Não tem vontade ou voz própria, mas esse foi exatamente o motivo pelo qual John se casou com ela. Logo ficamos sabendo que John foi apaixonado por uma mulher maravilhosa, mas que o fez sofrer e empurrou-o para os braços desinteressantes de Gerda.

John não está feliz, mas não sabe como resolver sua situação. Entre Gerda, Henrietta e a lembrança de Veronica, há muito se passando na cabeça do pobre homem.

A história continua, mas o que eu quero destacar é justamente a crise por que passa John e a caracterização das personagens. O que me impressionou não foi a indecisão do médico ou a insipidez da esposa, mas, sim, o fato de que Agatha Christie tenha descrito aspectos tão íntimos e tão ligados à personalidade. Não me lembro de nenhum outro livro em que ela aprofunde tanto a faceta psicológica dos personagens.

Ainda não terminei o livro, mas já gostei. Na verdade, ouso dizer que pouco importa o crime, pouco importa o desvendar do enigma: a história me cativou mesmo sem o suspense.

4 comentários:

Anônimo disse...

Miga, você gosta tanto de ler que às vezes os seus comentários, análises, resenhas, etc., são bem mais gostosos que o livro indicado.
Isso é dom. Dom é divino.

blog do dudu santos disse...

Na verdade já li toda obra de Clarice e tantos outros,existe uma mágica que a vida com o seu tempo nos ensina, releia tudo de novo, parece que é outro livro, sua experiencia da vida a cada 10 anos muda todo seu enfoque do teu ser
abraços

Bia disse...

Iphy, obrigada!
Você, sempre gentil.

Dudu,
obrigada pela visita!
Sabe que acho que você tem razão? Tem livros que me parecem completamente diferentes com o passar do tempo.
Volte sempre!

Beijos da Bia

Anônimo disse...

Interessante esse pensamento de "economizar" livros...e se transplantássemos a idéia para as relações? Será que tudo seria mais fácil se economizássemos as pessoas, se economizássemos... nós mesmas?
Se não nos entregássemos tanto, se fôssemos sovinas no doar aquele "a mais" que sempre parece faltar?
Se não nos encontrássemos todos os dias; se só fizéssemos amor sazonalmente, será que o tesão se eternizaria?
Economia de amor? Economia de carinho? De calcinha nova? De cheiros e brinquedos?
Ai, ai: acabei de descobrir que sou um risco inflacionário.