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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Contos inacabados (1)

Recebi o pacote com as cartas dois dias depois do funeral. Reconheci a letra instantaneamente, assim que coloquei os olhos no envelope. A escrita uniforme, com microespaços a cada três ou quatro letras, porque ela costumava respirar entre as sílabas. Ou mudar de idéia enquanto escrevia.

Era um pacote pardo, de papel reaproveitado, correto como ela foi, ou tentara ser, por toda a vida. Parecia um envelope de escritório, embora não tivesse timbre e eu soubesse que ela não tinha emprego fixo. Lógico que não, escritor não tem carteira assinada, não bate ponto, não tem holerite.

Imaginei que fosse algum manuscrito, um livro inacabado. Nada me preparou para o que encontrei quando abri o pacote, o que só aconteceu semanas depois de eu o ter recebido. A turnê do meu último livro tinha recém começado e eu viajaria pelo país visitando universidades e bibliotecas por algum tempo antes de voltar para casa. Eu poderia ter carregado o pacote comigo, leria no avião, teria tido tempo para isso, mas não o fiz. A bem da verdade, eu receava o conteúdo, temia desvendar aquele mistério.

De volta, ainda demorei alguns dias para criar coragem para finalmente descobrir o que uma moribunda teria para me dizer, a mim, que há tantos anos não a via e que soubera da morte pelos jornais.

Aquela correspondência me perturbava. Os ecos da nossa última conversa ainda me atormentavam.

Cuidadosamente, rasguei o pacote com o abridor de cartas. Não queria arriscar estragar o envelope. Era a letra dela que estava ali, era uma das últimas coisas que ela tinha escrito. Ainda que fosse apenas um endereço, era o lugar onde ela tinha morado durante breves instantes. Era o meu nome que estava ali, as últimas letras de uma das maiores escritoras que já conheci.

Um punhado de cartas. Ou eu supunha eram cartas. Fechadas em envelopes de diversas cores e tamanhos, endereçadas a pessoas de quem eu nunca tinha ouvido falar. Havia também uma carta para mim.

Ela dizia que tinha tido muito tempo para pensar e que sentira minha falta, embora não pudesse chamar meu nome. Ela esperara o filho se ausentar do quarto para entregar o pacote à enfermeira junto com um dinheiro e a recomendação de postá-lo só depois que morresse. Ela pediu que eu procurasse aquelas pessoas. Disse que eu precisava conhecê-la, compreender o que tinha se tornado. Disse que era o único jeito: se eu ainda quisesse saber quem ela era, deveria seguir as cartas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Baibí,

Fiquei emocionada ao ler este conto (inacabado?). Talvez porque existam inúmeras cartas imaginárias, outras tantas escritas em meus diários e outras em caixas secretas de correspondências antigas que guardo desde sempre. Há palavras a você e à nossa amiga querida, mãe do Arthur e do Allan. Sempre haverá.

Como é bom reconhecer em seus textos aqui, passados 20 anos, as redações que líamos em voz alta na sala de aula: talvez os melhores que já escrevemos.

Parabéns! Seu casco-casa está do caraio!

Beijo grande.

Bia disse...

Sudji,
saber que você, que escreve bem pra chuchu, ficou emocionada com um texto meu é uma honra!

Emocionada fiquei eu com o seu comentário. Obrigada pelas palavras, ditas e não-ditas.

Concordo com você: as redações da escola foram alguns dos melhores textos que já escrevemos.

Beijos, amiga.