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sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Baudelaire e o duplo (2)

Um dos poemas de Baudelaire de que mais gosto é Hino à Beleza (Hymne à la Beauté), construído em cima de diversos duplos:

Vens do fundo do céu ou do abismo, ó sublime
Beleza? Teu olhar, que é divino e infernal,
Verte confusamente o benefício e o crime,
E por isso se diz que do vinho és rival.

Em teus olhos reténs uma aurora e um ocaso;
Tens mais perfumes que uma noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca um vaso
Que tornam fraco o herói e a criança corajosa.

Sobes do abismo negro ou despencas de um astro?
O Destino servil te segue como um cão;
Semeias a desgraça e o prazer no teu rastro;
Governas a tudo e vais sem dar satisfação.

Calcando mortos vais, Beleza, entre remoques;
No teu tesoiro o Horror é uma jóia atraente,
E o Assassínio, entre teus mais preciosos berloques,
Sobre teu ventre real dança amorosamente.

A mariposa voando ao teu encontro, ó vela,
“Bendito este clarão!” diz antes que sucumba.
O namorado arfante enleiando a sua bela
Parece um moribundo acariciando a tumba.

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! monstro horrendo e ingênuo! se de ti
Vêm o olhar, o sorriso, os pés, que abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és capaz de tornar – fada dos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! – a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?

(Algumas Flores de As Flores do Mal. Trad. Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996)

Percebam que, durante todo o poema, o poeta utiliza a idéia do duplo: dois elementos que ora se antagonizam, ora se complementam. Somente nas duas primeiras estrofes temos céu e abismo, divino e infernal, benefício e crime, aurora e ocaso, herói fraco e criança corajosa.

O eu lírico, por sua vez, inicia o poema indagando de onde veio a Beleza, se do céu ou do abismo (primeira e terceira estrofes). Conforme a Beleza vai conquistando-o, o eu lírico desiste de descobrir a origem (“Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa”, “De Satã ou de Deus, que importa?”) para apaixonar-se e gozar dos encantos da musa.


O eu lírico, na última estrofe, percebe que, mais importante do que saber de onde veio a Beleza, é desfrutar dos prazeres que ela proporciona: a vida menos feia e o universo menos triste. Ainda assim, ele lamenta que os instantes tornaram-se mais breves. Entendo que essa lamúria pode ter duas causas: o que é esteticamente belo é, também, efêmero, não subsiste; ou, os instantes que o eu lírico passa junto à sua musa é que lhe parecem breves, nunca serão suficientes, ele sempre quererá mais tempo com ela.



Baudelaire deixou uma vasta produção: poemas, ensaios críticos, poemas em prosa. Escreveu, ainda, um livro de ensaios sobre Edgar Allan Poe, essencial para entendermos o escritor americano e desvendarmos os primórdios da literatura contêmporanea.

2 comentários:

Codinome Beija-Flor disse...

Bibi, Bibi, Bibi....
Quase me faltou o fôlego depois de ler esse poema, (não conhecia).
"Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa..." - isso que é amar sem medo, sem receio, sem temor, isso que é amar com coragem.
A sua interpretação !!! Me sinto o próprio "SALIERI", diante de você "MORZAT", mas com uma grande diferença, tenho admiração, inveja nunca.
Parabéns Bibi.
Beijinho

Anônimo disse...

Ah!, Baudelaire... que dedica Les Fleurs du Mal, "au poëte impeccable, au parfait magicien ès lettres françaises, à mon très-cher et très-vénéré maître et ami Théophile Gautier...".
Que dizer de "L'homme et la Mer", "Châtiment de l'Orgueil", "La Beauté", "L'ideal", "L'albatros" (conhece algo que defina melhor o poeta?)... e "Le Cygne", "La Fontaine de Sang", "Sur le Tasse en Prision", etc.?
Agora v. me fez reviver uma época danada de boa!
Simão